Por Fernando do Amaral Nogueira, Diretor Executivo da ABCR, professor da FGV EAESP - Escola de Administração de Empresas de São Paulo da Fundação Getulio Vargas e integrante do Movimento por uma Cultura de Doação.
Pensando friamente, o ato de doar raramente faz sentido racional. O mundo é complexo e seus problemas enormes. Que diferença faz doar 10 reais frente ao desmatamento da Amazônia? O que 100 reais fazem pra ajudar com o desafio da população de rua em grandes cidades? Ou até R$ 1 milhão no combate a fake news e desinformação?
Ainda bem que a gente não age só com uma motivação. Nossas ações costumam ter muitas explicações, algumas mais claras e outras inconscientes. Uma forma de explicar por que doamos vem de um conceito usado por quem estuda jogos e brincadeiras: o círculo mágico.
O termo foi cunhado pelo sociólogo Johan Huizinga, em seu livro “Homo Ludens”. O círculo mágico é uma metáfora para o espaço que a gente entra ao jogar ou brincar. Dentro dele, as regras do mundo real deixam de valer. Valem outras ideias e normas, e quem está dentro aceita essa nova realidade para fazer parte do jogo. A interação entre os participantes acontece com base nessa nova realidade.
O ato de doar também cria um tipo especial de círculo mágico, que vem da conexão emocional e simbólica entre quem doa e quem recebe.
Assim como a brincadeira cria uma fronteira psicológica que separa o mundo do jogo do mundo real, uma doação cria uma fronteira simbólica entre o doador e o beneficiário. Eles estão se conectando por meio da doação.
Dentro do círculo mágico da doação, as regras e normas que mais valem são diferentes. Generosidade, empatia, comunhão, gratidão e compaixão passam ao topo de nossas preocupações. Não é sempre assim que a gente age no dia a dia.
Nesse espaço, a conexão entre as pessoas também muda. A forma de falar, de pensar, de se relacionar é diferente. A doação costuma ir além da transação financeira, do valor doado. O ato pode criar um vínculo de gratidão e união pode gerar uma compreensão de que algo especial aconteceu entre os envolvidos.
Jogos terminam, e aí o círculo se quebra. Voltamos à fria realidade, recheada de preocupações, ansiedades e problemas. O círculo mágico da doação também não dura para sempre. Mas o que os estudos lúdicos mostram é que essas experiências podem nos transformar. Animais brincam para aprender a caçar. Pessoas brincam para testar novas ideias, desenvolver habilidades, para poder errar sem grandes consequências e aprender com seus tombos.
Que transformações o ato de doar pode deixar? Destaco duas: comunidade e esperança.
Ao doar, a gente alimenta um sentido de comunidade. É uma forma prática de dizer que não estamos sozinhos no mundo, que nos preocupamos com outras pessoas, com nossas causas. É um ato que reforça laços e relações em torno de objetivos comuns: acabar com fome e miséria, dar oportunidades, melhorar a vida de alguém.
A doação também valoriza, acima de tudo, a sensação de esperança. Esperamos que o mundo possa ser melhorado. Que os problemas tenham alguma solução. Que podemos fazer diferença, por menor que seja nossa ação ou doação.
Quando a gente termina a doação e sai de dentro de seu círculo mágico, algo está diferente em nosso mundo real: nós mesmos. Estamos transformados, com uma nova visão de mais comunhão e esperança. Nosso olhar e interações com o cotidiano mudam. E assim faz muito mais sentido entender por que as pessoas doam.
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