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Valorizar o jornalismo brasileiro também é fomentar a cultura de doação

Por Ana Ju Rodrigues, mãe de três, jornalista e entusiasta e pesquisadora da educomunicação. Líder de projetos no Instituto MOL, convidada pela Mariana Campanatti, ambas vozes do Movimento por uma Cultura de Doação.


Foto: Leo Malafaia/AFP



A maneira como vemos o mundo é moldada, em grande parte, pelas histórias que nos são contadas. E também pelas histórias que contamos. 


Vivemos mediados pela comunicação de massa, do despertar ao adormecer consumimos e produzimos conteúdo o tempo todo. E o jornalismo, em especial, ao selecionar e apresentar os fatos, constroi narrativas que influenciam nossa percepção da realidade. Ao nos conectarmos com as experiências de outras pessoas, as notícias nos sensibilizam e muitas vezes nos motivam a agir. 


Mas como esse processo de construção da consciência coletiva se relaciona com nosso desejo de apoiar causas sociais e falar sobre elas? Relembrar grandes reportagens que influenciaram mudanças na sociedade pode nos dar algumas pistas.


A emblemática série "Watergate" do Washington Post, que levou à renúncia do presidente e as reportagens sobre a “crise da AIDS” que denunciaram a negligência do governo dos Estados Unidos em relação à epidemia são alguns exemplos universais da grande imprensa como aliada de uma sociedade democrática.


E não precisamos ir longe. Por aqui, as reportagens sobre o assassinato de Amarildo geraram grande repercussão na imprensa e na sociedade. As investigações jornalísticas sobre o caso revelaram falhas na investigação policial e na proteção dos direitos humanos, contribuindo para a criação de mecanismos de controle da polícia e a discussão sobre a violência policial no Brasil. O assassinato da vereadora Marielle Franco e do motorista Anderson Gomes, em 2018, gerou uma onda de protestos e mobilização da sociedade civil. As reportagens sobre o caso revelaram a complexidade do crime e a necessidade de aprofundar as investigações sobre o envolvimento de grupos paramilitares e milícias, trazendo para o debate público temas como os direitos das mulheres, direitos das pessoas LGBTQIAPN+, a defesa dos direitos humanos, entre outras.


Já na área da saúde, a cobertura jornalística sobre a Crise da Dengue nas últimas décadas contribuiu para a criação de campanhas de conscientização sobre a prevenção da doença e a pressão sobre o governo para investir em pesquisas e no combate ao mosquito transmissor. Assim como foi durante a pandemia em 2020.


Mais recentemente, nas enchentes no Rio Grande do Sul, o jornalismo teve um papel crucial na mobilização de doações e na demonstração de solidariedade em todo o país. Ao apresentar de forma clara e abrangente a dimensão da tragédia, a imprensa conseguiu sensibilizar a população e estimular a contribuição para as ações de recuperação.

São inúmeros exemplos de como a imprensa é capaz de impulsionar a sociedade a exigir mudanças e que podem influenciar, pouco a pouco, a cultura de doação e a percepção da sociedade sobre o exercício de cidadania contido no ato de doar. 


Mas para isso é preciso também oferecer oportunidades de produção de reportagens, para que comunicadoras e comunicadores possam ir além da denúncia de grandes violações de direitos ou dos momentos de emergência – é preciso oferecer dados, criar premiações, construir bancos de fontes, ofertar cursos, fomento à pesquisa para que possam produzir reportagens com qualidade, apuração e criatividade. Valorizar o trabalho de jornalistas, comunicadores populares e os sonhos de jovens estudantes também é construir pontes seguras para que as histórias sejam contadas a partir de onde elas acontecem. 


Da ponte pra cá: inspirações para atravessar


No início dos anos 90, uma iniciativa voluntária dos jornalistas Âmbar de Barros e Gilberto Dimenstein passou a pautar e analisar a grande mídia sobre temas ligados aos direitos de meninos e meninas, em especial naquele momento, ao grande movimento de articulação política pela aprovação do ECA.


Sete anos depois, em 1997, já nomeada como ANDI — Comunicação e Direitos, eles criaram o Jornalista Amigo da Criança para reconhecer e valorizar a atuação de jornalistas que realizam uma cobertura de qualidade sobre assuntos relacionados aos direitos de crianças e adolescentes.


O título foi entregue a centenas de jornalistas, formando uma rede de comunicadores comprometidos com a causa da infância e da adolescência e mudou a forma como o tema passou a ser abordado na imprensa. 


Inspiradas pelo legado da ANDI, aqui no Instituto MOL temos acompanhado há dois anos a diversidade de produções jornalísticas sobre a cultura de doação no país – as diferentes formas de fazer jornalismo, assim como as de doar e as de contar histórias de doação. Nas duas primeiras edições do Prêmio MOL de Jornalismo para a Solidariedade, recebemos pouco mais de 300 reportagens, vindas de quase todos os estados brasileiros. Com diferentes pautas, abordagens, formatos e meios de distribuição.


Em uma breve análise dos materiais recebidos, observamos que no primeiro ano da premiação, 2022, grande parte das reportagens, vindas de 23 diferentes estados tinham em comum pautas que falavam sobre os reflexos da pandemia e da fome no país. Elas davam destaque à atuação dos trabalhadores das organizações da sociedade civil e dos ativistas de movimentos sociais na promoção de mudanças.


Em 2023, assim como no ano anterior, as reportagens também foram diversificadas regionalmente, vindas de 21 estados brasileiros. As pautas foram mais amplas: tinham foco nas comunidades periféricas e grupos marginalizados, evidenciando as desigualdades sociais e a necessidade de políticas públicas mais inclusivas. Destas, 39% vieram de jornalistas do Norte e Nordeste.


Especialmente em comum, elas trouxeram visões positivas e inspiradoras, mostrando soluções para os problemas retratados por meio da solidariedade, da cooperação e do engajamento social, o que chamamos por Jornalismo de Soluções, e que no Brasil tem sido desenvolvido por várias organizações competentes no tema, como é o caso da Amazônia Vox.


Para a terceira edição, o Instituto incluiu em sua premiação uma categoria destinada ao jornalismo comunitário, que entendemos por aquele que é periférico, indígena, preto e quilombola. Feito por, sobre e para a periferia. O objetivo é valorizar o fazer nos territórios e proporcionar condições para que estes comunicadores possam exercer seus direitos todos, dentre eles o de comunicar. Contribuindo para a construção de uma narrativa mais justa e completa sobre o Brasil.


E muito mais do que isso: fomentar a produção diversa sobre cultura de doação no jornalismo brasileiro também é garantir o exercício da democracia. Dados recentes do Atlas da Notícia apontaram que 26,7 milhões de pessoas vivem em 2.712 cidades sem qualquer veículo de comunicação local. Os investimentos em jornalismo comunitário e local, incluindo veículos digitais e rádios comunitárias, bem como o apoio à inovação nos formatos de distribuição das notícias, são fundamentais para avançar contra os “desertos de notícias” no país.


Neste ano, em um momento de conexão com o grupo de finalistas que ficou hospedado em São Paulo após a cerimônia de premiação, uma colega do Recife falou algo que me marcou: “Eu até poderia vir para o sudeste, tentar o jornalismo aqui. Mas se eu vier, quem vai contar as histórias da minha gente?”.


E essa fala me lembrou uma entrevista que fiz com Tia Dag, fundadora da Casa do Zezinho, na ocasião da pesquisa para o lançamento da premiação em 2022. A perguntamos de que forma, na prática, as OSCs gostariam de ser retratadas na imprensa. E ela me falou de pontes e deixou um recado: “tão importante quanto construí-las, é importante atravessá-las pra cá”. 


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