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Sorriso no rosto, coração quentinho: coletânea sobre doar

Por Joana Ribeiro Mortari , diretora da Acorde Desenvolvimento Humano , cofundadora da Philó | Práticas Filantrópicas , Corresponsável pela Proximate Press Brasil, cocriadora e membro do comitê coordenador do Movimento por uma Cultura de Doação.


Foto: Joana Mortari (Arquivo Pessoal)
"Sorriso no rosto, coração quentinho. Sei que este dinheiro vai beneficiar uma pessoa, um lugar, uma prática, o mundo. Este, para mim, é um lugar de liberdade, que me conecta com algo maior e mais importante do que o dinheiro, do que eu mesma. Me sinto parte de algo que quero ver florescer no mundo."

Esta escrita começa com uma confissão: tenho uma pasta com impressos de meus artigos, um sinal claro de uma juventude sem telas, de uma mente que se organiza a partir do sentir o papel, da ordem cronológica dos capítulos de um livro. Após alguns anos digitando ao vento, me dei conta que havia perdido a conexão entre as ideias que formam o meu pensar sobre doação. A pasta é minha maneira de convocá-las de volta, assim como esta coletânea. 


O primeiro parágrafo foi escrito em outubro de 2022 quando tentei, pela primeira vez, articular uma ideia coerente sobre a relação entre liberdade e doação. Sempre disse que doação não é uma obrigação, mas, ao mesmo tempo, também não pode ser algo só sobre quem doa, livre de um olhar para a necessidade do mundo, para as práticas de doação.


Ainda em outubro de 2022, escrevo:

"Respeito, de fato, deveria ser a base de qualquer relação, seja ela afetiva, de negócios ou doação. Mas será que a forma como doamos é sempre respeitosa com o trabalho de outras pessoas?"

Então doação tem a ver com liberdade mas também deveria exigir do doador um proceder respeitoso. Mas respeitoso no sentido de reverencial, não de obediente, ainda que muitos de nós tenhamos sido educados como se esses termos fossem sinônimos. O que essa frase traz, o que a pessoa que me contou sobre respeito me fez ver, é que algo especial acontece quando a doação vem acompanhada de um olhar apreciativo, quando ela permite e inspira atitudes, ideias, jeitos de fazer diferentes. Quando ela traz para quem recebe a liberdade de agir conforme suas próprias crenças e valores, sua experiência. Agora me diga, como é o seu doar, leitor? 


Um mês depois, em novembro, aproximadamente uma década depois de eu ter gestado o Movimento por uma Cultura de Doação, me veio um insight. A propósito, insight não tem tradução! É aquele momento em que você se dá conta de que chegou em um lugar novo de compreensão, em que algo vindo da profundeza do seu ser torna uma situação mais clara. O dicionário chama de conhecimento, nada a ver. A Ana Biglione, amiga e sócia na Philó | Práticas Filantrópicas , chama de 'sacada'. Melhor. 


Verdade Inconveniente

"Me dei conta de que a verdade inconveniente (da filantropia) já não sai de mim, que não me basta mais ser uma ativista por uma cultura de doação qualquer, porque não é mais toda doação que me faz sentido, talvez nunca tenha sido. Talvez eu tenha apenas demorado para reconhecer que seja lá o que façamos por meio da doação, se não mudarmos os padrões subjacentes que sustentam e justificam uma sociedade com diferenças sociais abissais, continuaremos a ser parte do sistema que os reforça."

Aqui minha vida de arquiteta de ideias sobre o doar se divide, de novoA primeira divisão, há 10 anos, é quando da minha experiência prática na Acorde Desenvolvimento Humano nasce a ideia de movimentar todo um campo para repensar a filantropia. Conectar pessoas, ideias, pôr todos na mesma sala para conversar, provocar reflexão. A segunda (de onde brota a Philó) me revela sinais de cansaço: não me bastava servir a um setor filantrópico que, em nome do bem, vai se fortalecendo alicerçado em um sistema que sustenta opressões. Que tolhe liberdades. Que privilegia uns em relação a outros. Que adota práticas meritocráticas e competitivas. Que vai se tornando um espelho do setor empresarial sem se dar conta dos efeitos negativos de suas escolhas. E que fantasiosamente e unilateralmente determina que as práticas imbuídas nesses princípios são as melhores práticas e levam às melhores ONGs. 


A busca parece ser por desapriosionar o doar das amarras de pensamentos que reduzem seu sentido. Eu acho que esta sempre foi a busca e o que está se diferenciando, na verdade, é o caminho. 


Seguimos. Fevereiro de 2023. Vou atrás de Mario Sergio Cortella, filósofo brasileiro, para me ajudar a abrir a estreita relação entre ajuda e obrigação moral que, agora pensando, também é sobre a relação de liberdade. Escrevi:

"Quando a ideia de doação é tida como um ato de ajuda, fazer o bem a alguém, ela me parece apequenada. Apequenada não é sinônimo de errado, mas tem o sentido de segurar algo em coisa menor do que de fato é, ou pode vir a ser. A doação quando vista como ajuda parece ser despida de um olhar pra si mesmo, de reflexão sobre a relação entre a forma como cada um de nós vive e as oportunidades que temos versos a dos outros. Já a de obrigação moral me soa impositiva, algo que perde sua espontaneidade, liberdade e valor, que é justamente esse de se envolver com as necessidades de um outro, de alguém ou alguma causa maior do que si mesmo, não porque sou obrigado, mas porque eu me importo, porque eu me vejo como uma parte do problema e da potencial solução."

Doar não é sobre ajudar, que tem sentido de fazer um favor ou socorrer, nem sobre ter uma obrigação - algo que cumpre, vira as costas e esquece do assunto. Mas até então eu não havia achado o que está entre essas duas coisas. Até que me vem outra sacadadoar é sobre reconhecer a importância de algo e passar a fazer parte desse algo que me é importante, que importa ao mundoDoar se expande na relação entre o que me move e o que é importante para o mundo. 


Pula para junho de 2024, e o filme DOAR expressa claramente, verbalmente e na sutileza das expressões faciais, a importância de uma doação para quem recebe. Eu já sabia, porque eu começo minha vida no setor social captando recursos e recebendo doações. Mas muitos doadores não sabem. Se soubessem o bem que faz para quem recebe, talvez doassem mais livremente. 


E ainda que eu já tenha ido longe para um texto, e ultimamente tenho sido lembrada de como anda difícil para que nos concentremos em uma leitura, preciso terminar. Março de 2023, escrevo sobre meritocracia. 


A semente da reflexão sobre doação e meritocracia está nas aspas acima, quando eu me lembro da importância de olhar para "as oportunidades que temos versus a dos outros". A relação entre ambas já me perseguia há tempos, mas um desenho coerente não me veio tão rapidamente. Foram dois livros sobre meritocracia para eu conseguir me esticar. Touro com ascendente em capricórnio: o que chamam de teimosia vem a calhar quando eu encasqueto com algo. Termino esta coletânea com ele, já abusando do tempo e da atenção que o leitor tem disponível: 


"Meu convite hoje é para prestarmos atenção, para fazermos o exercício coletivo e constante de reconhecer as falhas do sistema exacerbadamente meritocrático em que vivemos. E para reconhecermos que, ao contrário do que nos vem sendo ensinado há quatro décadas, viver de doação no campo social é legítimo, da mesma maneira que o setor público vive de impostos e o privado de vendas de produtos e serviços. Doar não é fazer um favor e receber doação não é viver de favor. Doar é uma escolha rumo a uma sociedade que compreende que mérito é importante e não deriva apenas de habilidades reconhecidas pelo mercado, ou vida econômica, acolhendo, respeitando e valorizando diferentes formas de conhecimento."

 
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  2. O filme DOAR apresenta histórias de pessoas comuns que tiveram suas vidas transformadas pela cultura de doação. Assista o trailer oficial do filme.






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