Por Erika Sanchez Saenz, diretora executiva do Instituto ACP e membro do Comitê Coordenador do Movimento por uma Cultura de Doação
Publicado originalmente no Vozes do MCD
Vivemos em um país multicolorido, multicultural, multirreligioso. Junto com a nossa natureza esplêndida, a nossa característica “multi” é, para mim, uma das nossas maiores forças - a nossa potência.
Por outro lado, também estamos no topo da lista dos países mais desiguais do mundo. A pobreza que construímos ao longo da nossa história tem raça e gênero e os números não deixam dúvidas: mulheres negras são o grupo mais vulnerável da nossa sociedade. Homens jovens negros são as principais vítimas das mortes violentas.
Por detrás desta realidade que não gostamos de olhar está o racismo estrutural sobre o qual tanto se tem falado nestes tempos.
Esse conjunto de práticas que estão tão consolidadas e estruturadas antecedem o indivíduo e se manifestam em todos os aspectos da nossa cultura, influenciando nosso comportamento de maneira invisível. Estamos todos e todas condicionados a ele queiramos ou não, gostemos ou não, aceitemos ou não.
Quando o assunto é racismo, gosto de enfatizar que acredito que o processo de mudança é, nesse caso, sobre cura, e não sobre culpa. O sentimento de culpa só nos deixa doentes em qualquer relação – seja com nossos familiares, amigos e amigas ou diante de um coletivo.
Na minha experiência de desenvolvimento pessoal tenho aprendido que o processo de mudança de atitude envolve pelo menos 4 etapas (e que cada uma delas é uma longa caminhada): 1. Tomar consciência; 2. Se corresponsabilizar; 3. Estar muito presente e atento para identificar quando estamos repetindo padrões por inércia; 5. Colocar Intenção e atitude para mudar comportamentos.
Esse exercício também pode ser realizado quando estamos falando de doação. Como podemos tornar a doação uma ação que é agente de desconstrução do racismo estrutural ao invés de alimentá-lo?
Compartilho aqui algumas ideias que fui aprendendo ao longo dos últimos anos com muitas pessoas – pretas e brancas – e outras fruto da reflexão da minha própria experiência seja no âmbito profissional no campo da filantropia e do investimento social, como cidadã doadora, ou em outras esferas da vida:
Doe para o diferente: especialmente se você é uma pessoa branca que faz parte do ‘topo da pirâmide’ (e para estar no topo da pirâmide no Brasil, você não precisa ser herdeiro/a ou ter se tornado milionário, basta que ganhe mais de 10 mil reais ao mês*), busque apoiar aquilo que é diferente de você.
Busque ativamente projetos e organizações negras: organizações ‘negras’ não necessariamente tem equidade racial como parte da missão ou como sua causa central. Podem ter lideranças negras e o compromisso com uma atuação antirracista.
Estimule que as causas e organizações que você apoia reconheçam e atuem na agenda da equidade racial: a maioria de causas e organizações podem ter ações antirracistas na sua atuação externa ou interna. Como doador/a, você pode ter um papel importante de estimular uma atuação antirracista perguntando sobre isso.
Não aplique o roteiro padrão: se você seleciona iniciativas para receberem doação, tratar todo mundo igual não é sinal de equidade, mas, ao contrário, pode contribuir para perpetuar as estruturas desiguais que existem há séculos. Por isso, quando estiver diante de uma pessoa negra que está captando recursos, considere que, possivelmente, o caminho para chegar até ali foi mais duro. Pergunte sobre isso. Exerça uma escuta atenta e empática. E considere tudo isso na tomada de decisão.
Informe-se e estude: leia sobre o tema e converse com outras pessoas sobre isso. Escute pontos de vista diversos. Reflita sozinho/a também.
Fale sobre equidade racial sempre que puder: essa não é uma causa exclusiva de pessoas negras, é uma agenda prioritária da sociedade brasileira como um todo. Cada vez que você fala sobre ela, você contribui para que outras pessoas possam despertar para a importância do tema também.
Transforme as estruturas internas: se você trabalha em organização social – em uma ONG ou em instituto ou fundação de investimento social privado e filantropia – estimule como puder para que haja diversidade na equipe e nas lideranças da organização, incluindo também o Conselho.
Busque o que une: quando tiver diante de si uma pessoa que pareça muito diferente de você, faça o exercício maravilhoso de buscar aquilo que vocês têm em comum. Você poderá ter uma grata surpresa. É a partir daquilo que nos une, não do que nos separa, que o afeto se constrói. E filantropia e equidade racial são muito mais potentes quando são sobre amor.
*A renda mensal média de quem está entre os 5% mais ricos no Brasil é de R$ 10.313,00, conforme os dados da Pnad Contínua – Rendimento de todas as fontes 2019, do IBGE.
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