Por Andrea Wolffenbuttel, líder do mandato de comunicação e membro do Comitê Coordenador do Movimento por uma Cultura de Doação.
Publicado originalmente no Vozes do MCD
Acontece todo dia. Estou andando na rua ou dentro do carro esperando o semáforo abrir e uma pessoa pobre e necessitada estende a mão e me pede algum dinheiro, qualquer valor, só uma moeda...
Um dia
Faço contato visual com ela e vejo o que não quero ver. Há sofrimento, vergonha, rancor, ódio, fracasso. Consigo enxergar tudo claramente porque se trata de um ser humano igual a mim. O coração é igual, a mente é igual, os olhos são iguais. Dois mil anos de cristianismo desabam sobre mim. Abro a bolsa a procura de algum trocado. Não acho, não tenho, não se usa mais dinheiro. Entrego uma nota de vinte reais e recebo um agradecimento e uma bênção.
Outro dia
Faço contato visual com ela e não consigo ocultar minha ira. Por que tenho que conviver com essa realidade agressiva toda vez que ponho a cara para fora de casa? Por que moro em uma cidade, um país, que não consegue achar uma solução para essa questão? Por que essas pessoas fazem as escolhas erradas e agora ficam na minha frente como uma prova viva do fracasso do modelo de sociedade no qual eu vivo? Por que ninguém resolve esse problema? Uma raiva corrosiva toma conta das minhas entranhas. Aperto o passo ou acelero o carro e vou em frente. Às vezes, ainda dá tempo de ouvir o impropério dirigido a mim.
Mais um dia
Faço contato visual com ela e sinto uma profunda tristeza. Registro mentalmente que preciso falar com a organização social que cuida da população mais vulnerável desta região para saber o motivo do aumento do número de idosos vivendo nas ruas. Vou perguntar se há algo que estão precisando especificamente agora, além da doação mensal. Posso indicar alguns voluntários ou talvez intermediar a conversa com estabelecimentos comerciais para que ajudem. Sinto um conforto interior por saber que existem profissionais tão comprometidos que trabalham pela causa dos moradores mais carentes da minha cidade. Sigo meu percurso com um leve resquício silencioso da tristeza.
Reflexões
Sempre que escrevo algo relativo a doação, me lembro da Diretriz número 2 do Movimento por uma Cultura de Doação: “promover narrativas engajadoras”. Fiquei muito em dúvida, sem saber se esse breve desabafo de minha vivência pessoal, quando recebo um pedido de doação, poderia ser chamado de “narrativa engajadora”. Acredito que não.
Porém, se alguém se identificou com o meu relato, talvez se sinta menos sozinho nessas reações de pena, de fúria e de solidariedade. Talvez se sinta menos impotente diante de um problema tão grande, ao pensar que somos milhares a nos importar. Talvez faça com que esse leitor conte para alguém como se sente e assim crie mais uma ‘história de doação ou não doação’, mas que fale sobre doação. Que leve os outros a refletirem sobre doação. Enfim, que torne ainda mais humana esse ato maravilhoso de doar.
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