Por Joana Mortari, diretora da Associação Acorde e integrante do Comitê Coordenador do Movimento por uma Cultura de Doação.
Me reconheço mulher, sexo e gênero feminino. Mas quanto de feminino há em mim e quanto tive que o ajustar ao longo da vida para que eu pudesse caber melhor em uma forma de pensar eminentemente masculina?
Ouvir a Renata Saavedra no Programa Despertar me fez pensar se doar também não está apertado em um mundo que perdeu o controle sobre as histórias do feminino sagrado há muito tempo… tempo suficiente para consolidar uma narrativa que percebe como normal um papel secundário para a mulher (que precisa lutar por direitos iguais), onde fazer piada sobre o 'lugar' da mulher é divertido, e quem não gosta é porque não entendeu a piada. Onde é preciso tipificar a violência contra a mulher como crime para tentar garantir a ela o direito de ter sua integridade física respeitada.
Neste mundo, me parece, práticas filantrópicas também sofrem sexismo. Nell Edgington descreve que, nos Estados Unidos, 75% da força de trabalho do terceiro setor é de mulheres, enquanto 95% dos CEOs das empresas listadas na S&P 500 são homens, assim como 75% dos cargos governamentais. O dinheiro que financia o terceiro setor, diz ela, tem principal origem nos setores privado e público, dominados por homens, que procuram as proverbiais organizações 'boa-moça' - aquelas que contribuem para "o bem" sem querer chacoalhar o status quo.
A imagem trazida pelas entrevistadas no Podcast Aqui Se Faz, Aqui se Doa # 57, por sua vez, é de que mesmo no setor dominado por mulheres e quem suas origem ligada ao espaço encontrado pela mulher na sociedade (no tempo em que homens ganhavam e mulheres "gastavam"), hoje é preciso que as mulheres formem movimentos para lutar por direitos iguais. É como se tanto o financiamento quanto o funcionamento do setor de mudança social estivesse sendo alinhavado pelo arquétipo masculino. Linha esta que já nos é tão conhecida que não mais a percebemos, mas que nos aperta, nos dá forma, nos conforma.
As roupas alinhavadas pelo arquétipo masculino já não me cabem mais. Quero poder falar livremente que eu não fiz um desenho estratégico e de longo prazo do Movimento por uma Cultura de Doação, por exemplo, mas segui minha voz interna em busca de sentido em um campo que eu adentrava e percebia "estranho". Que a partir de então caminhei atentamente no formar do Movimento, articulando ideias a partir da minha prática no desenvolvimento institucional da Associação Acorde e sentindo o reverberar das ideias proferidas, se elas faziam ou não sentido para outras pessoas, como em um sonar. Que ao mesmo tempo que fui estudando e afinando minha compreensão do campo social, conseguindo nomear e diferenciar o que eu havia achado “estranho” no começo, fui me abrindo para entender que cada pessoa que se conectava (e ainda se conecta) à ideia-força do Movimento o faz do seu lugar presente de compreensão do mundo e do setor, e desenha o seu caminho de desenvolvimento. Que ao se desenvolverem, o setor se desenvolve. Que o meu doar de tempo e reflexões precisava acolher diferentes visões e percepções para formar um terreno fértil de desenvolvimento para algo além das minhas vontades, porque as vontades, sozinhas, apequenam.
E com isso tudo, fui dormir pensando que precisamos formar em nós a possibilidade de um campo filantrópico organizado em torno da ideia de um doar que carrega em si a intuição sem deixar de ser eficiente, o amor sem ser piegas e caritativo. Onde há espaço para uma prática doadora que caminha com intenção e intuição, força e delicadeza, sem ter que aniquilar o feminino para ser valorizado.
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