Por Nathalie Gil, Presidente da Sea Shepherd Brasil , e membra do Movimento por uma Cultura de Doação.

Imagine que existe uma grande solução para o enfrentamento da crise climática na qual nos encontramos hoje. Uma solução que promete salvar milhões, senão bilhões, de vidas. Pense que foi inventada uma maneira de absorver 90% do calor excedente da atmosfera gerado pela atividade humana e pelo menos ¼ de todo o dióxido de carbono ou equivalente.
Essa solução também manteria seguros os serviços ecossistêmicos essenciais para a nossa prosperidade na Terra, como o estoque de oxigênio no ar que respiramos e os ciclos fluviais que irrigam nossa produção de alimentos. Você doaria para organizações que estão lutando para fazer essa fantástica tecnologia acontecer pelo bem da humanidade?
Pois bem, essa tecnologia já existe, já está operante, mas está em cheque. Estou falando do oceano.
O oceano é essencial para a vida na Terra: produz mais de três quartos do oxigênio que respiramos. Por outro lado, construímos uma sociedade de costas para ele: despejamos 11 milhões de toneladas de plástico no mar; nossos produtos químicos criam zonas mortas e contaminam os peixes; o excesso de calor aquece suas águas e colapsa ecossistemas. A pesca predatória e intensiva retira animais marinhos em quantidades avassaladoras, que representam 99% de todos animais mortos para consumo (isso mesmo!), colapsando populações inteiras que desempenham funções vitais para um oceano saudável para servir de alimentação para somente 2% das calorias que hoje a humanidade consome (FAO, 2021). Isso vale a pena?
Para alertar sobre essa crise, a ONU declarou esta a Década do Oceano. No entanto, um estudo do Fórum Econômico Mundial revelou que apenas 0,01% dos investimentos filantrópicos globais vão para iniciativas relacionadas ao oceano, o ODS 14 com foco na vida na água, é o menos investido hoje no mundo. Segundo a pesquisa, são necessários cerca de US$ 175 bilhões por ano para alcançar esse objetivo até 2030, mas, entre 2015 e 2019, um total de menos de US$ 10 bilhões foi investido (Johansen et al., 2020).
Para pessoas físicas, a realidade da cultura de doação para o oceano não é diferente. Segundo uma pesquisa independente comissionada pela Sea Shepherd Brasil à HSR Research em 2023, apenas 16% dos brasileiros doaram para a causa do oceano ou participaram de alguma atividade voluntária nessa área nos últimos três anos. É o segundo menor índice da pesquisa, perdendo apenas para o apoio a povos tradicionais e indígenas (o que também é preocupante). O dado mais alarmante da pesquisa é que 52% dos que não se engajam com o tema afirmam nunca ter ouvido falar de uma instituição que protege o oceano para poder apoiar, mesmo com nomes conhecidos como o Projeto Tamar, o Instituto Baleia Jubarte, o Greenpeace ou a própria Sea Shepherd Brasil, que têm presença constante na mídia sobre o assunto.
Mas por que esse fenômeno ocorre? Primeiramente, pode-se concluir que o oceano é visto como uma causa distante, talvez a mais distante, dos doadores. Não se percebe uma responsabilidade direta para preservá-lo, como acontece com o combate à fome, a cura de doenças, a educação ou mesmo outras causas ambientais cujos impactos têm mais visibilidade, como a destruição de florestas ou a proteção de animais terrestres.
No Brasil, mesmo com 54% da população brasileira vivendo em áreas litorâneas, há um distanciamento e a crença de que a causa marinha não é uma responsabilidade individual, mas deve ser financiada por compensação ambiental de grandes poluidores. De fato, os maiores projetos de preservação do oceano no Brasil hoje são financiados por empresas como a Petrobras, que mantém o maior programa de monitoramento de praias do mundo, porém seguindo uma obrigação legal.
Existe ainda um desconhecimento generalizado sobre a vasta importância do oceano para a nossa sobrevivência e a da vida na Terra. Falamos sobre a "ponta do iceberg" do plástico, mas não vemos o que está abaixo da linha d'água. Segundo um estudo da WWF, 85% das populações de animais selvagens em sistemas aquáticos e 65% dos que vivem no mar já foram perdidas. Já colapsaram 50% dos corais do mundo e 30% dos manguezais, ecossistemas essenciais para o combate à crise climática.
O desafio maior, no entanto, é que nossa sociedade é sustentada pela falsa noção de que o oceano é infinito, resistente e capaz de se regenerar sozinho, e de responsabilidade de ninguém, uma ‘terra sem lei’. Essa mentalidade leva à exploração predatória dos recursos marinhos sem preocupação com o futuro. Além disso, o lobby das indústrias pesqueira e petrolífera frequentemente bloqueia avanços em políticas públicas que poderiam proteger os ecossistemas oceânicos.
Como consequência temos toda uma cultura tratando o oceano de maneira comercial, até em nossa linguagem. Chamamos espécies selvagens de “frutos do mar”. Mensuramos populações de espécies como “estoques pesqueiros”. Estudamos a qualidade da água do mar para somente saber sua balneabilidade para banho. Protegemos mais de 16% das áreas em terra, e cerca de 3% no mar.
Diferentemente de florestas como a Amazônia, que mobilizam atenção e financiamento, o oceano segue invisível para grande parte da sociedade.
Para reverter esse cenário, nossa cultura de doação precisa ser mudada. Nossa sobrevivência depende de que a narrativa sobre o oceano saia do campo do fascínio do desconhecido, e entre no coração e na ação da população. Empresas também podem contribuir integrando o ODS 14 às suas estratégias, reavaliando sua cadeia de valor, financiando iniciativas de preservação e reduzindo a poluição gerada por suas atividades.
Uma das formas mais diretas e eficazes de fazer a diferença é apoiar organizações como a Sea Shepherd Brasil. Somos uma organização que atua na linha de frente da proteção do oceano: combatendo a pesca ilegal, resgatando animais marinhos, denunciando crimes ambientais e promovendo mudanças legislativas. Sem financiamento adequado, a capacidade de ação de quem já enxerga o problema e lidera a mudança é limitada. Incentivar doações para a conservação do oceano é um passo crucial.
Precisamos nos reconhecer como cidadãos planetários. Nossa cultura de doação precisa urgentemente expandir seu círculo moral para além das pessoas e da vida terrestre e enxergar o planeta azul. Afinal, se o oceano morre, nós morremos.
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