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"Mas… como eu sei se merece?" Expressões modernas da ideia medieval de 'pobre merecedor'

Por Ana Biglione e Joana Ribeiro Mortari, fundadoras e consultoras da Philó | Práticas Filantrópicas e integrantes do Movimento por uma Cultura de Doação.

Foto: Canva

Nada existe de forma isolada. Tudo que é, é em relação ao seu contexto. Ainda que isso possa soar óbvio, a realidade é que nossa percepção sobre as coisas adormece à luz de seu contexto.


A filantropia, como campo que rege a forma como dispomos de bens em benefício a causas, se desenvolve a partir de sua relação com conceitos e ideias formuladas ao longo dos séculos. Isto faz com que a palavra filantropia, ainda que usada desde o século XVII com a mesma grafia, ganhe novas compreensões ao longo do tempo*. Conforme o contexto no qual a filantropia está inserida muda - e com ele as ideias sobre classes sociais, identidade religiosa, bem-estar social, desenvolvimento de sistemas de tributação e atribuição de obrigações aos Estados, dentre outras - o que compreendemos por filantropia também se modifica.


Uma ideia que a envolve, como um fruto que envolve a semente, é a de que existem pessoas em situação de pobreza que merecem ajuda e outras que não merecem. Merecedores eram aqueles entendidos como trabalhadores, pessoas esforçadas e que, por circunstância alheia, estavam em dificuldades, ou aquelas das quais não se esperava trabalho e produção: mulheres, órfãos, inválidos. Conforme esta prática de doação, originalmente ligada à igreja, começa também a ser exercida por indivíduos e associações, estes adotam também as visões meritocráticas presentes no contexto (VALLELY, 2020). A mesma coisa acontece conforme o Estado assume a obrigação de prestar assistência à população. Em 1834, por exemplo, a Inglaterra promulga uma lei, chamada A Nova Lei dos Pobres, que oficializa a diferenciação entre merecedores e não merecedores (VALLELY, 2020).

Ainda que hoje esta ideia, de que alguém pode definir quem merece e quem não merece ajuda, possa soar inadequada, colonialista e indesejável, esta forma de pensar parece não ter se dissipado, mas se escondido nas sombras do pensamento e se tornado algo sobre o qual dificilmente nos damos conta que seguimos fazendo. Adormeceu em seu contexto. "Você não pode chegar lá [em uma sociedade que, de uma maneira geral, valoriza pessoas igualitariamente] tentando transformar as pessoas que não valoriza em pessoas que deseja valorizar." (BRUENING; 2018).


Com o passar dos séculos, subjacente às diversas decisões na esfera pública e privada, a ideia de "pobre merecedor" ainda se faz presente em diversos lugares: no nosso sistema de assistência social e, ainda que mais sutilmente, quando escolhemos para quais organizações doar. Aliás, subjacente e não evidente, talvez ela esteja mais viva do que se tivesse a luz da nossa vista.


Hoje em dia, "pobres merecedores" são pessoas (ou organizações) que você reconhece como tendo alcançado um certo padrão de esforço aceitável. "Ainda há muitas pessoas que acreditam que os que vivem na pobreza, até certo ponto, estão lá como resultado de sua própria falta de fibra moral ou ética de trabalho; ou que ser pobre representa algum tipo de escolha" (DAVIS; 2022).


A sensação de que as pessoas podem se acomodar com o que lhes é oferecido é comumente usada por aqueles que criticam a assistência social, gerando desconfiança e alimentando o medo de que podem estar sendo explorados por outros, "folgados". O risco de que alguém possa mal intencionadamente abusar de um benefício é algo posto, mas a ideia de que essa é a lógica predominante em toda a sociedade, mantém o sistema tal qual ele é hoje, inviabiliza mudanças concretas nas dinâmicas das relações econômicas e de poder.


Assim como para lidarmos com questões entranhadas de racismo nos é pedido não apenas reconhecer nosso racismo (em seus diferentes âmbitos), mas nos tornarmos ativos no antirracismo, é preciso que nos tornemos ativos em criar novas premissas orientadoras das nossas escolhas de doação.


Algumas perguntas que temos que nos fazer são:

  1. Que histórias estão sendo contadas sobre as pessoas em situação de pobreza (e organizações sociais), e por quem? Quais os vieses presentes nessas histórias?

  2. Quais as práticas e discursos que nós, como campo da mudança social, adotamos que reforçam uma narrativa de "merecimento" e/ou de desconfiança?

  3. O que realmente está orientando nossa prática de doação? Que valores ou crenças estão por trás das escolhas que estamos elegendo como "critérios de seleção"?

 
* Você sabia?

Todos sabemos que filantropia significa 'amor à humanidade', mas raramente ouvimos que este amor foi, na verdade, fruto de uma traição e arduamente castigado. Prometeu, ao entregar o fogo dos deuses aos humanos, foi condenado por Zeus a ficar amarrado a uma rocha por toda a eternidade enquanto uma grande águia comia todo dia seu fígado — que se regenerava no dia seguinte. A história do 'amor pela humanidade' é uma de traição ao status quo e de uma nova vida que se desenvolve a partir de então.


 

Bibliografia


BRUENING, E. The Undeserving Poor: A Very Tiny History. https://medium.com/@ebruenig/the-undeserving-poor-a-very-tiny-history-96c3b9141e13. Acessado em 09 de maio de 2023.


DAVIS, R. Cold as Charity: philanthropy and the "underserving poor". https://philliteracy.medium.com/cold-as-charity-the-history-of-philanthropy-and-the-notion-of-the-undeserving-poor-ca82dcae8607. Acessado em 09 de maio de 2023.


VALLELY, P. Philanthropy: From Aristotle to Zuckerberg. 1st. ed. London: Ed. Bloomsbury Continuum, 2020.



 

Artigo integrante da 4ª edição "Vozes do MCD"




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