top of page

A Filantropia Brasileira pariu um rato!

Por Renato Orozco, é diretor na Idealist.org/pt para os Países de Língua Portuguesa e diretor-fundador da Associação Nossa Cidade, gestora dos Fundos Regenerativos Brumadinho e Grande BH, também é integrante do Movimento por uma Cultura de Doação.


Foto: Taha (Unsplash.com)
Uma montanha estava prestes a dar à luz e gemia de uma forma horrível. Esses barulhos geraram grande expectativa nas áreas ao redor, mas no final ela acabou por dar apenas à luz um rato. [Moral:] Esta fábula foi escrita para todos aqueles que após levantarem grandes expectativas, não fazem nada de especial.” (Fábulas de Fedro)

Como recém frequentador das conferências e rodas de conversa da filantropia brasileira, gostaria de compartilhar três situações que vivi em conferências ou encontros distintos que me deixaram intrigado com algumas práticas “normalizadas” da filantropia e ESG brasileira ou, como o Fábio Deboni costuma chamar, da “fantástica fábrica de impacto”


Situação #1

Durante uma conferência de filantropia, testemunhei milionários pedindo contribuição para seus fundos filantrópicos, corporações se vangloriando de suas metas de impacto social e incensando seus programas de mentoria e de como são bons em transferir know-how para as organizações sociais. Percebi que muitas empresas executam seus próprios programas, mas pouco ouvi sobre destinar recursos diretamente para organizações sociais, sobretudo as de base.


Situação #2

Em uma outra grande conferência de filantropia, em uma mesa em que se discutia ESG, ouvi de uma gestora que sua empresa tinha dificuldade em financiar projetos da comunidade, pois essas não “estavam aptas” para receber e executar projetos. A solução encontrada é que investiriam então na qualificação das organizações para que fortalecesse suas gestões, qualificando-as para assim serem dignas de captar o recurso. Quando, após o evento, questionei a gestora sobre ações de transformação interna para que a empresa se tornasse mais flexível em seu processo de financiamento de projetos, me surpreendi com uma postura de desdém e a inevitabilidade de que nada poderia ser feito pois a governança da empresa possui um padrão elevado de compliance.


Situação #3

Em exibição de estreia do filme Doar, sobre filantropia e cultura de doação, meu colega da Associação Nossa CidadeEduardo Cetlin, comentou que as elites brasileiras deveriam doar mais. O que ele não esperava foi a defesa veemente de alguns participantes de que o problema não estava na ponta doadora, mas por faltar às ONGs capacidade de captar.


Mas será isso mesmo? 


O que todas essas situações têm em comum é uma visão distorcida que subestima a capacidade das comunidades e do setor social e ignora a responsabilidade das empresas e financiadoras frente a uma filantropia disfuncionalexcludente e conservadora.


Pouco dinheiro chega na comunidade. Por outro lado, abundam programas de mentoria que transferem “capacidade de gestão” para as entidades de base comunitária.


O que fica implícito é a falta de confiança na comunidade e organizações sociais de base para executarem os projetos. Mas a comunidade sabe o que fazer! E está muito mais preparada para gerar sua própria transformação social do que estamos prontos a aceitar.

O entendimento falacioso de que há uma incapacidade de gestão das organizações de base comunitária e a preferência por programas de qualificação em detrimento ao aporte direto de recursos tem ainda mais um efeito negativo: pressionam as organizações a perseguirem uma agenda de “profissionalização” que não necessariamente é benéfica.


Nem todas as iniciativas sociais, grupos e movimentos precisam se formalizar. A formalização não é um estágio de desenvolvimento da organização e algumas podem optar por não seguir essa estrutura e lógica de funcionamento. Até mesmo como forma de se evitar custos e burocracias cartoriais e com contabilidade, é perfeitamente razoável que uma associação de bairro decida permanecer informal.


Segundo a Aliança Empreendedora, no Brasil há cerca de 19 milhões de empreendedores informais. O estudo “Periferias e Filantropia” da Iniciativa Pipa, também pinta um quadro de grande informalidade para as iniciativas sociais periféricas, que também contam com equipes predominantemente voluntárias e não exclusivas ao projeto. 


Quando os financiadores exigem documentações fora da realidade de quem se inscreve, inclusive que estejam formalizadas, isso contribui para a exclusão e para que o recurso não chegue onde deve estar. Como coletivos e grupos informais ficam de fora por não terem CNPJ, isso pressiona as organizações a se formalizarem de forma precoce ou desnecessária, por entenderem que só assim conseguirão acessar recursos. 


Outro problema ao tentar transferir métodos de gestão tradicionais 'goela abaixo' das organizações de base comunitária é desconsiderar que a lógica da comunidade é bem diferente da corporativa. Como implementar uma metodologia de gestão baseada em comando e controle hierárquico quando a lógica da comunidade é o do voluntariado e solidariedade? Como exigir métricas e relatórios financeiros complexos quando a prática é uma execução dos recursos bem mais fluida e flexível? 

“Para além das ideias de certo e errado, existe um campo. Eu me encontrarei com você lá.” (Rumi, místico sufi)

Transparênciaplanejamentosustentabilidade previsibilidade existem nas organizações de base comunitária, mas em formato diferente do que é exigido pelos editais. O melhor executivo das empresas, munido de todas suas ferramentas de gestão, nunca dará conta da realidade da favela. Mas as pessoas que moram lá, utilizando formas e métodos comunitários, conseguem!


Ao invés de oferecer o martelo e considerar que todo o problema é prego, faria bem aos financiadores deixarem de acreditar que tem a bala de prata para resolver os problemas da comunidade e começarem a aprender com ela! É essa a escolha por exemplo da Rede Comuá, com o edital SaberesA comunidade não só já sabe o que fazer como também é capaz de ensinar.


Quando executamos uma intervenção OASIS na comunidade do Bananal, em Belo Horizonte/MG, junto à Bridge Gestão Social e Localiza, ouvi de um dos executivos da empresa que ele tinha aprendido em poucos fins de semana na comunidade mais do que em todo um programa de MBA. Com um mutirão de mais de 200 pessoas, atuando de forma autogestionada e energizados por seus sonhos e inteligência coletiva, revitalizou-se todo o território em apenas um fim de semana.


Pois é, na prática, a teoria é outra. Além do Jogo Oasis, metodologia criada pelo Instituto Elos, eu recomendo a autogestão 02 da Target Teal e design colaborativo de projetos Dragon Dreaming. Para práticas de filantropia baseado na confiança, apresento o estudo de caso do Fundo Regenerativo Brumadinho e mais recentemente em 2024 do Fundo Regenerativo Grande BH. Um novo instrumental para a filantropia, baseado na confiança e relações igualitárias já existe, basta usá-lo.



Finalmente, não posso encerrar sem mencionar que além de doar mal, ainda doamos pouco, muito pouco no Brasil. Os US$3.5 bilhões de doações no Brasil são menos de 1% dos US$500 bilhões movimentados nos EUA, em que pese as diferenças tributárias. 


Não é razoável acreditar que o culpado por nossa raquítica filantropia sejam as entidades sociais, por não saberem captar e gerir recursos. 


Empresas e investidores sociais privados, que tal olharmos para dentro e tentar transformar a nós próprios antes de encher a boca para alardear os próprios méritos? 


Meu desejo com esse artigo é que os gestores de ESG e das Fundações filantrópicas brasileiras reflitam sobre suas lógicas internas e transformem seus processos para serem mais inclusivos, flexíveis e generosos. Se queremos que a filantropia brasileira contribua com a transformação social em nosso país, precisamos fazer mais e fazer melhor


Inevitavelmente isso deve passar por olharmos para dentro e percebermos nossos próprios vieses e a necessidade de empreendermos transformações organizacionais e paradigmáticas que nos levem verdadeiramente a uma filantropia que transforma.


Comentarios


horizontal-shot-of-pretty-woman-with-pleasant-smile-on-face-enjoys-online-communication-on
horizontal-shot-of-pretty-woman-with-pleasant-smile-on-face-enjoys-online-communication-on

Cadastre seu e-mail

E acompanhe as novidades sobre cultura de doação.

bottom of page